Vivemos em uma sociedade que aplaude a autopromoção, valoriza o networking estratégico e mede o sucesso pelo alcance e visibilidade. Os "primeiros lugares" — seja em uma reunião, em uma rede social ou na hierarquia corporativa — são os alvos de uma busca incessante. Neste cenário, a Palavra de Deus deste domingo ressoa não como um conselho amigável, mas como uma bomba que implode as fundações da nossa lógica mundana. As leituras nos convidam a um caminho de descida, a uma "inversão radical" de valores, propondo a humildade e a caridade como os verdadeiros pilares da grandeza humana e espiritual. Mas o que essas virtudes, tão antigas, têm a dizer à nossa complexa realidade social e psicológica?
A Humildade como Sanidade Psíquica: Para Além da Autoestima
A primeira leitura, do livro do Eclesiástico (Eclo 3), nos aconselha: "Na medida em que fores grande, humilha-te em tudo". O mundo moderno, muitas vezes, confunde humildade com baixa autoestima, com uma negação do próprio valor. A análise exegética do texto, no entanto, nos oferece a chave hebraica: anavah. Esta não é uma atitude passiva, mas um "autocontrole deliberado".
Do ponto de vista psicanalítico, a anavah é o antídoto para a inflação do ego e para o narcisismo, que o próprio texto bíblico descreve como "uma doença sem cura". O orgulho, na sua essência, é uma desconexão com a realidade. É a criação de um "falso eu" que precisa ser constantemente alimentado por aplausos e reconhecimento externo. A pessoa soberba vive em uma "alienação sobre a fé" e, podemos dizer, sobre si mesma.
A humildade, portanto, é um ato de profunda sanidade psíquica. É a coragem de se ver em verdade: uma criatura diante do Criador, um ser limitado, interdependente e falível. Não se trata de se odiar, mas de se amar corretamente, reconhecendo tanto os dons recebidos quanto a própria finitude. Como nos ensina a psicanálise, a aceitação da realidade, por mais dura que seja, é o primeiro passo para a cura. A humildade é essa aceitação radical da verdade sobre quem somos, e é essa verdade que, paradoxalmente, nos abre à graça e aos "mistérios" divinos que o ego inflado é incapaz de perceber.
A Caridade como Revolução Sociológica: A Mesa do Reino vs. A Mesa do Mundo
Se a humildade reorganiza nosso mundo interior, a caridade, como descrita no Evangelho de Lucas (Lc 14), pretende revolucionar nosso mundo social. Jesus observa o comportamento dos convidados, que, como a análise nos lembra, não era apenas vaidade, mas uma afirmação de poder e status em uma sociedade rigidamente hierarquizada. A resposta de Cristo propõe duas mesas distintas.
A Mesa do Mundo opera sob a lógica da reciprocidade e do capital social. Convidamos aqueles que podem nos retribuir, que agregam valor à nossa imagem, que fortalecem nossas alianças. É uma mesa de troca, um investimento social. As relações são funcionais, e o "outro" é, muitas vezes, um meio para um fim.
A Mesa do Reino, por outro lado, é um ato de pura subversão sociológica. Jesus nos instrui a convidar "os pobres, os aleijados, os coxos e os cegos" — exatamente aqueles que, na cultura da época (e na nossa), não possuem capital social, não podem oferecer retribuição, não agregam status. Convidá-los é romper com a lógica utilitarista. É um ato de pura graça que reflete o amor de Deus por nós, que nos amou quando nada podíamos Lhe oferecer em troca.
Essa proposta é o coração da Doutrina Social da Igreja e sua "opção preferencial pelos pobres". Não se trata de filantropia, mas de justiça. É a criação de espaços de acolhida e pertença que desafiam ativamente as estruturas de exclusão do mundo. Como o Salmo 67 canta, é Deus quem "prepara um lar para os abandonados", e nós somos chamados a ser os construtores desses lares.
Da Comunidade do Medo à Comunidade da Pertença
Como é possível viver essa inversão de valores? A Carta aos Hebreus (Hb 12) nos dá o enquadramento teológico e social. A passagem nos mostra a transição de uma religiosidade baseada no medo (o Monte Sinai, inacessível e terrível) para uma fé baseada na filiação e na alegria (o Monte Sião, a "Jerusalém celeste", uma "assembleia festiva").
Sociologicamente, esta é a passagem de uma comunidade mantida pela lei externa e pelo temor da punição para uma comunidade unida por uma identidade compartilhada e um sentimento de pertença. Não nos aproximamos de Deus como escravos temerosos, mas como filhos e cidadãos do Céu. É essa segurança ontológica, essa certeza de sermos amados incondicionalmente, que nos liberta da necessidade neurótica de buscar os primeiros lugares e nos dá a força para praticar a caridade gratuita. Só quem se sabe seguro em seu lugar à mesa do Pai pode, livremente, tomar o último lugar e ceder o seu aos que foram deixados de fora.
Em síntese, a jornada espiritual proposta hoje é clara e poderosa: começa com a humildade (anavah), a sanidade psicológica de nos sabermos criaturas; amadurece na compreensão da nossa nova identidade em Cristo, cidadãos de uma comunidade de amor e pertença; e se traduz na ação concreta da caridade, a revolução sociológica de montar mesas onde a única lógica é a da graça e da inclusão.
Que possamos, portanto, recusar os convites para os banquetes da vaidade e nos tornarmos anfitriões da Mesa Invertida, onde a verdadeira honra é servir e o maior tesouro é a alegria no rosto daquele que nada pode nos dar em troca.
Palavras-Chave: Humildade, Caridade, Sociologia da Religião, Psicanálise e Fé, Inclusão Social, Teologia Bíblica, Doutrina Social da Igreja
Referências Bibliográficas
BÍBLIA SAGRADA. Tradução da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Brasília: Edições CNBB, 2018.
CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA. Cidade do Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 1992. (cf. n. 2559 sobre a humildade).
JOÃO PAULO II. Carta Encíclica Sollicitudo Rei Socialis. Cidade do Vaticano, 1987. (cf. n. 42 sobre a opção preferencial pelos pobres).
BOURDIEU, Pierre. "The Forms of Capital". In: RICHARDSON, John G. (Ed.). Handbook of Theory and Research for the Sociology of Education. New York: Greenwood Press, 1986. pp. 241-258. (Para a análise sociológica das relações baseadas em "capital social").
FROMM, Erich. A Arte de Amar. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2000. (Para a perspectiva psicanalítica do amor altruísta como superação do narcisismo).
MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a Dádiva: Forma e Razão da Troca nas Sociedades Arcaicas. Lisboa: Edições 70, 2001. (Para o estudo antropológico da dádiva e da reciprocidade, contrastando com a gratuidade proposta no Evangelho).
BENTO DE NÚRSIA. A Regra de São Bento. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2018. (Para aprofundamento na virtude da humildade na tradição monástica cristã).
Nenhum comentário:
Postar um comentário