1. Introdução: A Tensão Dinâmica entre Graça e Liberdade
As leituras de Isaías 66,18-21;
Salmo 116(117),1-2 (com resposta a Mc 16,15); Hebreus 12,5-7.11-13; e Lucas
13,22-30 giram em torno de um mesmo eixo: a salvação de Deus é universal
e gratuita, mas exige esforço humano e decisão ética.
Aqui se encontra o paradoxo da fé
cristã: a salvação é 100% graça — um dom imerecido, obra exclusiva de Deus — e,
ao mesmo tempo, exige 100% da resposta humana — uma luta espiritual (agōnizomai).
A metáfora da “porta estreita” exprime precisamente essa tensão: Deus abre a
porta, mas o discípulo precisa atravessá-la com esforço, disciplina e
liberdade.
Esse fio condutor nos permite
articular três conceitos-chave: kavod (glória) de Deus, paideia
(disciplina) divina e agōnizomai (luta espiritual). Em seguida,
mostraremos como a Revelação ilumina e corrige correntes filosóficas modernas,
situando a liberdade como fundamento último da dignidade humana e do Direito.
2. Exegese das Leituras
2.1 Isaías 66,18-21 – A Glória (Kavod) e a Universalidade
da Salvação
O profeta anuncia que a glória de
Deus já não se restringe a Jerusalém, mas se estende “a todas as nações e
línguas”. A kavod, antes sinal de separação, torna-se universalidade e
inclusão.
Essa visão minou, ao longo da
história, toda pretensão de supremacia étnica ou nacional. Teólogos como
Bartolomé de Las Casas recorreram a essa verdade bíblica para denunciar a
escravidão e a opressão dos povos indígenas no Novo Mundo, antecipando a ideia
moderna de uma “família humana” que séculos depois se consolidaria em
documentos como a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Assim, a
universalidade da salvação bíblica ofereceu substrato para o princípio jurídico
da dignidade humana universal.
2.2 Salmo 116(117),1-2 – O Louvor Universal
O salmo mais curto do Saltério,
mas também o mais universal: “Louvai o Senhor, todas as nações!” (Sl 117,1). A
fé não é privilégio de alguns, mas chamado a todos.
Esse reconhecimento de igualdade
ontológica inspirou a defesa das liberdades civis e religiosas, afirmada no
Vaticano II (Dignitatis Humanae). Do ponto de vista jurídico, nenhuma
lei pode excluir alguém da possibilidade de professar sua fé e expressar suas
convicções.
2.3 Hebreus 12,5-7.11-13 – A Paideia Divina
O sofrimento, ensina o autor da
Carta, é disciplina formativa (paideia) do Pai amoroso. Ele não visa
humilhar, mas educar, gerando frutos de justiça e santidade.
Esse conceito nos ajuda a
refletir sobre o papel do Direito diante da dor. O Estado não pode eliminar
todo sofrimento, mas deve reconhecer seu valor formativo quando vivido com
sentido. Daí decorre, por exemplo, o cuidado ao legislar sobre eutanásia: ignorar
a dimensão espiritual da dor seria reduzir o humano ao mero biológico, negando
a possibilidade de crescimento e dignidade mesmo na provação. Para o indivíduo
e sua comunidade, a dor e o sofrimento fazem parte da existência e, quando
assumidos com dignidade, serenidade e sabedoria, podem contribuir para a
edificação de uma sociedade capaz de tratar o sofrimento alheio com respeito e
solidariedade.
2.4 Lucas 13,22-30 – A Agonia (Agōnizomai) da Porta
Estreita
Jesus adverte: “Esforçai-vos (agōnizomai)
para entrar pela porta estreita” (Lc 13,24). A salvação não é automática, nem
garantida por pertença étnica ou práticas externas. Exige conversão e vida
justa.
Esse texto confronta formalismos,
tanto religiosos quanto jurídicos. Uma fé reduzida a rituais sem ética é tão
insuficiente quanto um sistema legal que garante direitos no papel mas falha em
promover justiça real. A verdadeira justiça, bíblica e jurídica, é
transformadora.
3. Diálogo com a Filosofia Moderna
3.1 Livre-Arbítrio
A doutrina cristã sustenta a
cooperação entre graça e liberdade: “Deus, que te criou sem ti, não te
salvará sem ti” (Agostinho). Sem liberdade, não há responsabilidade, mérito
ou amor, não há sociedade ética e garantia da igualdade, liberdade e solidariedade
da Declaração Universal dos Direito Humanos.
O livre-arbítrio fundamenta o princípio da não-coerção e da
não censura que são a própria base da dignidade humana.
3.2 Utilitarismo
Bentham e Mill defendem que a
ação moral é a que maximiza a felicidade para o maior número.
Para o cristianismo, cada pessoa
tem valor infinito porque é criada à imagem de Deus (imago Dei). O
utilitarismo, ao sacrificar o indivíduo pelo coletivo, ignora essa dignidade. A
parábola da ovelha perdida (Lc 15,4-7) é, de fato, um “anti-utilitarismo”: Deus
não se guia pela estatística, mas pelo amor absoluto a cada pessoa.
Políticas utilitaristas que, em
nome do bem coletivo, autorizam práticas como o aborto ou a eutanásia, muitas
vezes acabam tratando vidas humanas como descartáveis, reduzindo a pessoa a um
problema social a ser eliminado.
3.3 Ética Kantiana
Kant defende a moral como dever universal, segundo o
imperativo categórico.
- O universalidade
da lei moral aproxima-se do chamado universal de Isaías e do Evangelho.
- A
ética cristã vê a lei moral como válida, mas incompleta. A razão pode
descobrir o “quê” (o dever), mas apenas a graça revela o “porquê” (o amor
a Deus e ao próximo) e dá o “como” (a força do Espírito), a fraternidade
que reconhece o sofrimento alheio como próprio e se engaja solidariamente
na luta por uma vida mais digna para todos.
- A lei
humana deve ser universal e imparcial, mas não pode se esgotar em dever
frio; precisa ser animada pela caridade e orientada ao bem comum.
3.4 Liberalismo Lockiano
Locke defendeu a liberdade de consciência como direito
natural.
- A
Igreja confirma esse direito, como em Dignitatis Humanae.
- A
liberdade cristã vai além da mera ausência de coerção (liberdade de);
é também liberdade para amar e viver segundo a verdade. É a
passagem de uma liberdade de escolha para uma liberdade de qualidade.
- Isso
fundamenta não só a liberdade de expressão e religião, mas também a
necessidade de formar consciências para que a liberdade se exerça em vista
do bem.
4. Nuance Histórica
Reconhecemos que, ao longo da
história, instituições cristãs nem sempre aplicaram de modo coerente o
princípio da liberdade — a Inquisição e as guerras religiosas são exemplos
disso. No entanto, o núcleo teológico permanece intacto: a fé autêntica deve ser
sempre um ato livre. Desde os Padres da Igreja, especialmente Agostinho,
insiste-se que a coerção é incompatível com a verdade da fé e a liberdade humana
dada por Deus.
5. Conclusão: Direito, Ética e a Porta Estreita
As leituras bíblicas analisadas tecem uma narrativa de
universalidade, disciplina e decisão ética. Ao dialogar com a filosofia
moderna, percebemos que:
- O
livre-arbítrio é confirmado.
- O
utilitarismo é corrigido pela dignidade do indivíduo.
- O
kantismo é elevado pela graça.
- O
liberalismo lockeano é aprofundado pelo amor cristão.
Assim, a salvação cristã se
revela como fundamento último da dignidade humana: liberdade e amor unidos na
graça. No campo jurídico, isso se traduz na defesa da liberdade de expressão e
consciência e da vida, com as devidas limitações éticas, como pilares das
liberdades civis nos regimes democráticos.
A “porta estreita” é o lugar
desse paradoxo: dom gratuito de Deus e exigência de esforço humano. É nesse
encontro entre graça e liberdade que se funda não apenas a salvação pessoal,
mas também a possibilidade de uma ordem social verdadeiramente justa, digna e
humana.
Palavras-chave: Teologia e
Direito, Filosofia Cristã, Liberdade Humana, Dignidade da Pessoa, Ética Cristã,
Porta Estreita, Universalidade da Salvação
Bibliografia e Referências
Textos Bíblicos e Documentos
da Igreja
- Bíblia de Jerusalém. Paulus.
- Concílio Vaticano II. Dignitatis Humanae
(Liberdade Religiosa). Vatican.va
- Catecismo da Igreja Católica (CIC). Vatican.va
Filosofia
- KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos
Costumes.
- MILL, John Stuart. Utilitarianism.
- LOCKE, John. Carta sobre a Tolerância.
- BENTHAM,
Jeremy. An Introduction to the Principles of Morals and Legislation.
Teologia e Direitos Humanos
- LAS CASAS, Bartolomé de. Brevísima relación de
la destrucción de las Indias.
- WOJTYLA, Karol (João Paulo II). Amor e
Responsabilidade.
- Ratzinger, Joseph (Bento XVI). Introdução ao
Cristianismo.
- Segundo, Juan Luis. Teologia da Libertação e
Ética Cristã.
Artigos e Recursos Online
- Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU). Un.org
- Stanford
Encyclopedia of Philosophy: Kant’s Moral Philosophy
- Stanford Encyclopedia of Philosophy: Utilitarianism
- Internet
Encyclopedia of Philosophy: John Locke
Vídeos e Aulas
- Frei Carlos Josaphat: A dignidade humana na
tradição cristã. YouTube
- Prof. Mario Sérgio Cortella: Ética e Liberdade.
YouTube
- Prof. Clóvis de Barros Filho: A Filosofia de
Kant. YouTube
- Dom Henrique Soares (in memoriam): A Porta
Estreita. YouTube
- PUC-Rio: Direitos Humanos e Cristianismo. YouTube

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