sexta-feira, 12 de setembro de 2025

A Cruz: Onde a Dor Encontra Sentido. Um Diálogo entre Fé, Psicologia e Psicanálise

No coração da fé cristã, ergue-se um símbolo que desafia toda a lógica humana: a Cruz. Instrumento de tortura e humilhação, transformado em trono de glória e fonte de vida. Celebrar a Exaltação da Santa Cruz não é, como alguns poderiam pensar, um elogio ao sofrimento pelo sofrimento. É mergulhar no mais profundo mistério do amor – um amor que não foge da dor, mas a atravessa, a assume e a transforma por dentro.

Esta verdade é tão vasta que, para contemplá-la, podemos nos valer não apenas da teologia, mas também dos ecos que ela encontra na psicologia e na psicanálise, campos que se dedicam a compreender as profundezas da alma humana. Unindo a sabedoria pastoral de uma meditação sobre a liturgia do dia com uma reflexão psicológica, descobrimos como a Cruz fala diretamente ao nosso "chão da vida".

A Teologia da Cruz: Uma Escola do Amor "Exagerado"

A liturgia da Exaltação da Santa Cruz nos oferece um itinerário de aprendizado. Começamos no deserto com o povo de Israel (Nm 21,4b-9). Cansados, murmuram contra Deus e são picados por serpentes venenosas. O veneno, aqui, é mais do que físico; é o veneno da ingratidão, da falta de esperança, do olhar fixo apenas na dificuldade do caminho.

A solução de Deus é pedagógica e surpreendente: Ele não elimina as serpentes, mas manda Moisés erguer uma serpente de bronze. A cura não viria de um amuleto mágico, mas de um ato de fé: tirar os olhos do chão da dor e olhar para cima, confiando na salvação que vem do Alto. Este gesto é um convite para romper com a fixação em nosso sofrimento e lembrar que não caminhamos sozinhos.

Este movimento de "abaixamento" e "levantamento" atinge seu ápice em Jesus Cristo. Como nos ensina São Paulo (Fl 2,6-11), o Filho de Deus "esvaziou-se a si mesmo" (kénosis), mergulhou em nossa frágil condição humana, obedecendo até a morte, e morte de Cruz. A Cruz é o ponto mais baixo deste mergulho. E é precisamente por isso que "Deus o exaltou", fazendo deste lugar de fracasso o trono do seu amor vitorioso.

No diálogo com Nicodemos (Jo 3,13-17), o próprio Jesus conecta os pontos: "Como Moisés levantou a serpente no deserto, assim é necessário que o Filho do Homem seja levantado". Olhar para Cristo na Cruz é o novo "olhar para cima". É contemplar a verdade última do universo, resumida na frase que ecoa através dos séculos: "Deus amou tanto o mundo, que deu o seu Filho unigênito".

A Cruz, portanto, é a escola divina onde aprendemos a amar sem medida, a encontrar vida na doação e glória na humildade.

A Psicologia da Cruz: Quem Tem um "Porquê", Enfrenta Qualquer "Como"

Esta profunda verdade teológica ressoa de forma poderosa com o que a psicologia, especialmente em sua vertente existencial, descobriu sobre a alma humana. Viktor Frankl, psiquiatra e sobrevivente de campos de concentração, fundou a Logoterapia com base em uma premissa central: a principal força motivadora do ser humano é a busca por um sentido para a vida. Ele afirmava: "Quem tem um ‘porquê’ enfrenta qualquer ‘como’."

O sofrimento, para Frankl, torna-se insuportável não por sua intensidade, mas pela falta de sentido. A celebração da Cruz, vista por esta lente, não glorifica a dor, mas oferece o "porquê" definitivo: o amor e a doação. Ajudar uma pessoa em um processo terapêutico a dar um novo significado às suas dores é um passo fundamental para a cura. A fé na Cruz faz exatamente isso: ressignifica nossas perdas, fracassos e dores, inserindo-os em uma narrativa maior de amor e redenção.

A exortação pastoral de "abraçar seu chão da vida" é um convite à aceitação, um conceito fundamental em abordagens como a Terapia de Aceitação e Compromisso (ACT). Não se trata de resignação passiva, mas de acolher a realidade como ela é, para, a partir daí, com os olhos fixos em Cristo, transformá-la.

A Psicanálise da Cruz: O Encontro com a Verdade Profunda

Se formos ainda mais fundo, a psicanálise nos permite ver a Cruz como o espaço simbólico do confronto com o Real – aquilo que em nós escapa ao controle do ego, à nossa fantasia de onipotência.

A Cruz representa:

  • O encontro com o limite: Ela nos mostra a verdade da nossa finitude, da nossa vulnerabilidade.

  • A renúncia ao narcisismo: O "esvaziar-se de si" de Cristo pode ser lido como a superação do egoísmo, a "castração simbólica" que nos abre ao Outro – a Deus e ao próximo.

  • O lugar da verdade: Na Cruz, a verdade nua e crua da condição humana é revelada, com toda a sua capacidade de odiar e de amar.

O gesto de "olhar para cima", para a serpente ou para Cristo, pode ser visto como uma metáfora do próprio movimento analítico: sair da repetição cega e inconsciente dos nossos sintomas ("olhar para o chão") para nos confrontarmos com a verdade do nosso desejo e da nossa história, por mais dolorosa que seja. É um ato de coragem que liberta.

Integrando os Olhares para uma Vida Fecunda

Teologia, psicologia e psicanálise, cada uma a seu modo, nos mostram que o caminho para a plenitude não é fugir da realidade, mas atravessá-la com sentido, coragem e amor. A Cruz é o símbolo máximo desta integração.

  1. Abrace seu "Chão da Vida": É um ato de fé (acolher a vontade de Deus), um movimento psicológico saudável (aceitação da realidade) e um passo psicanalítico essencial (confrontar-se com o real).

  2. Denuncie as Injustiças: Este chamado profético nos lembra que a cura não é apenas individual. A psicologia social nos ensina que o contexto importa. Uma fé madura e uma psique saudável não se calam diante das estruturas de pecado que crucificam os vulneráveis hoje.

  3. Contemple para Transformar: A oração aos pés da Cruz é um ato teológico de fé e adoração. Mas é também um poderoso exercício terapêutico. Ao apresentar nossas "picadas de serpente" – medos, angústias, pecados – Àquele que foi transpassado, permitimos que Seu amor cure e integre as partes feridas de nossa alma, abrindo espaço para a transformação.

A Exaltação da Santa Cruz, portanto, nos convida a um olhar multifacetado. Ela nos chama a encontrar, no paradoxo de um Deus crucificado, o sentido para nossos próprios sofrimentos, a coragem para enfrentar nossa verdade mais profunda e a força para transformar nosso mundo através de um amor que se doa até o fim. Não por acaso, é no lugar da morte que encontramos a fonte da vida eterna.


Palavras-chave: Cruz, Sofrimento, Sentido da Vida, Psicologia, Psicanálise, Teologia, Amor.


Referências e Sugestões para Aprofundamento

  • Bíblia Sagrada: Para aprofundar a base teológica do artigo, medite sobre as passagens citadas: Livro dos Números (Nm 21,4b-9), Carta aos Filipenses (Fl 2,6-11) e Evangelho de João (Jo 3,13-17).

  • Catecismo da Igreja Católica: Os parágrafos 616 a 618 oferecem uma síntese densa sobre o sacrifício redentor de Cristo na Cruz.

  • Frankl, Viktor E. Em Busca de Sentido: Um psicólogo no campo de concentração. Editora Vozes / Editora Sinodal. Leitura fundamental para compreender a importância do sentido na superação do sofrimento.

  • Ratton, D. A., & Féres-Carneiro, T. (2019). Psicanálise e religião: o que ainda podemos dizer? Um artigo que, assim como outros na área, explora o diálogo contemporâneo e complexo entre esses dois campos do saber.

  • Grün, Anselm. A Cruz: O Sim de Deus para o Sofrimento. Editora Vozes. O monge beneditino é um mestre em unir espiritualidade, teologia e psicologia de forma acessível e profunda.

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