Recentemente, um estudo publicado na conceituada revista científica Archaeometry causou alvoroço nos círculos de debate sobre o Sudário de Turim. Assinado pelo pesquisador brasileiro Cícero Moraes, o artigo "Image Formation on the Holy Shroud—A Digital 3D Approach" utiliza modelagem 3D para argumentar que a imagem no tecido é mais compatível com o contato de um baixo-relevo do que com um corpo humano tridimensional.
O estudo é visualmente impressionante e metodologicamente interessante. Moraes demonstra que, ao envolver um modelo 3D de um corpo humano com um pano digital, a imagem resultante fica anatomicamente distorcida, especialmente no rosto, criando algo semelhante à famosa "Máscara de Agamenon". Em contraste, ao pressionar o pano contra um baixo-relevo, a imagem gerada se parece muito mais com a que vemos no Sudário.
Diante disso, o caso estaria encerrado? O estudo de Moraes é a prova definitiva da falsificação? Pelo contrário. Uma análise mais profunda revela que o estudo, embora competente em sua área específica (a geometria), comete um erro lógico fundamental e, ironicamente, pode até reforçar a necessidade de se olhar para hipóteses que transcendem explicações simples.
Este artigo se baseia em uma crítica detalhada do trabalho para mostrar por que a conclusão de "obra de arte" é um non sequitur — um salto inferencial que a própria ciência não sustenta.
1. A Armadilha da Falsa Escolha
O principal problema do estudo é que ele apresenta uma falsa dicotomia, ou seja, nos dá apenas duas opções para escolher:
H1: A imagem foi formada pelo contato direto de um corpo 3D.
H2: A imagem foi formada pelo contato direto de um baixo-relevo artístico.
Ao mostrar que H1 gera distorções, o estudo conclui que H2 deve ser a resposta. Mas e se a verdadeira explicação não estiver em nenhuma dessas opções?
O estudo ignora completamente a principal classe de hipóteses que os pesquisadores do Sudário têm investigado há décadas: a formação de imagem por um mecanismo de não-contato. Essas hipóteses sugerem que a imagem foi projetada no tecido por algum tipo de energia, como um pulso de radiação (luz ultravioleta, descarga corona, etc.), que marcou o pano à distância.
Ao limitar a análise a apenas duas variações de "contato", o estudo falha em testar a alternativa que melhor explica as características mais anômalas do Sudário.
2. Geometria Não é Tudo: O Salto Lógico para a Química e a História
A segunda falha grave é extrapolar uma conclusão geométrica para uma afirmação histórica e química. Dizer que "a forma parece mais com um baixo-relevo" não explica como a imagem foi fisicamente impressa no tecido. Qualquer hipótese, artística ou não, precisa ser compatível com as propriedades físico-químicas únicas da imagem, que o estudo de Moraes não aborda:
Superficialidade Extrema: Análises microscópicas mostram que a imagem reside apenas nas fibrilas mais externas do linho, com uma profundidade de cerca de 200 nanômetros (milhares de vezes mais fina que um fio de cabelo). Nenhum método artístico conhecido, especialmente envolvendo calor ou pigmentos, consegue replicar essa característica. Um baixo-relevo aquecido, por exemplo, queimaria o tecido com uma profundidade muito maior.
Codificação 3D: A imagem do Sudário contém informação tridimensional codificada na intensidade de suas cores. Pontos do corpo que estariam mais próximos do pano (nariz, testa) são mais escuros, e pontos mais distantes são mais claros. Isso é perfeitamente consistente com um mecanismo de radiação, cuja intensidade diminui com a distância, mas é extremamente difícil de ser replicado por um artista medieval. O estudo de Moraes não demonstra quantitativamente que seu baixo-relevo reproduz essa codificação com a mesma fidelidade.
Sangue Antes da Imagem: Evidências forenses e químicas indicam que as manchas de sangue estavam no tecido antes da formação da imagem corporal. A imagem, por sua vez, se forma "ao redor" do sangue, mas não por baixo dele. Como um artista medieval, usando um baixo-relevo (quente ou não), conseguiria aplicar a imagem sem borrar, aquecer ou alterar as manchas de sangue já secas? O estudo não oferece resposta.
Afirmar que o Sudário é uma arte medieval apenas com base na geometria é ignorar o conjunto de dados mais complexo e desafiador que o artefato apresenta.
3. A Hipótese da Energia: Por Que Ela Continua Sendo a Mais Robusta?
Se a imagem não foi formada por contato direto, como sugere o estudo de Moraes, nem por um método artístico conhecido, o que resta?
Resta a hipótese de um evento energético. A ideia de que um pulso de energia, de curta duração e alta intensidade, emanou do corpo e projetou a imagem no pano. Este modelo:
Explica a ausência de distorção: Uma projeção, como a de um projetor de slides, não deforma a imagem da mesma forma que o contato direto.
Explica a superficialidade: Radiação de certo tipo (como VUV - Ultravioleta a Vácuo) interage apenas com a superfície do material, explicando a coloração sem profundidade.
Explica a informação 3D: A intensidade da imagem corresponderia naturalmente à distância entre o corpo e o pano.
Explica a não-afetação do sangue: Um pulso de luz não perturbaria as manchas de sangue já existentes.
Pesquisadores do centro de pesquisas ENEA, na Itália, conseguiram replicar em laboratório uma coloração semelhante à do Sudário em linho usando pulsos de laser UV de altíssima potência, concluindo que nenhum método do século XIV poderia gerar tal efeito.
Conclusão: Um Estudo Útil, Uma Conclusão Falha
O trabalho de Cícero Moraes é valioso por um motivo: ele demonstra visualmente por que a hipótese mais simplista — a de que a imagem se formou por simples contato com um corpo — é geometricamente improvável.
No entanto, ao saltar dessa premissa para a conclusão de que "é uma obra de arte", o estudo ignora décadas de pesquisa multidisciplinar e as características mais extraordinárias do Sudário. Em vez de encerrar o debate, o artigo inadvertidamente o reforça: se as explicações por contato são insuficientes, devemos olhar com ainda mais seriedade para mecanismos que não dependem dele.
A imagem do Sudário de Turim continua sendo um profundo mistério científico. Suas propriedades únicas desafiam explicações fáceis, sejam elas religiosas ou céticas. A convergência de anomalias geométricas, químicas, físicas e forenses em uma única peça de linho sugere que sua origem pode ser tudo, menos um acaso.
Para Aprofundar
Vídeos:
A Pesquisa da ENEA (Italiano com legendas): Cientistas italianos explicam como tentaram replicar a cor do Sudário com lasers UV, concluindo que a tecnologia necessária não existia na Idade Média.
Explicação da Informação 3D (Inglês): Veja como a NASA e o analisador VP-8 revelaram as propriedades tridimensionais ocultas na imagem.
Sites e Artigos:
Shroud.com: O mais completo e academicamente rigoroso arquivo de pesquisas sobre o Sudário, mantido por Barrie Schwortz, fotógrafo oficial do projeto STURP de 1978.
Críticas à Datação por Carbono-14: Artigo detalhado que resume as principais objeções científicas à datação de 1988, que é frequentemente citada como prova da origem medieval.
Artigo de Acesso Aberto da ENEA: Para quem deseja ler a pesquisa original dos cientistas italianos sobre a coloração por laser.
Referências Bibliográficas
Moraes, C. (2025). Image Formation on the Holy Shroud—A Digital 3D Approach. Archaeometry, DOI: 10.1111/arcm.70030.
Di Lazzaro, P., Murra, D., Santoni, A., Nichelatti, E. (2012). "Deepening the search for the causes of the body image formation on the Shroud of Turin". ENEA Technical Report.
Jackson, J. P., Jumper, E. J., & Ercoline, W. R. (1984). Correlation of image intensity on the Turin Shroud with the 3-D structure of a human body shape. Applied Optics, 23(14), 2244-2270.
Pellicori, S. F., & Evans, M. S. (1981). The Shroud of Turin through the eyes of a physicist. Archaeology, 34(1), 34-43.
Schwortz, B. M. (2009). The Role of the STURP Photographer. In B. Choi (Ed.), Proceedings of the International Conference on the Shroud of Turin.
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