quarta-feira, 3 de setembro de 2025

O Paradoxo do Amor que nos Encontra: Uma Jornada entre a Psicologia e a Fé

Neste domingo (07/09/2025), a liturgia nos lança no coração de um paradoxo que desafia a nossa lógica, mas que, ao mesmo tempo, responde aos anseios mais profundos da alma humana. A proposta de Cristo é desconcertante: para ganhar a vida em sua plenitude, é preciso perdê-la. Para encontrar o verdadeiro tesouro, é necessário renunciar a todos os outros. O que, à primeira vista, soa como uma loucura, revela-se, sob o olhar da fé e da psicologia, como o único caminho para uma liberdade e um amor autênticos.

Vamos explorar essa jornada em três dimensões: a reordenação de nossos apegos, a transformação de nossos relacionamentos e o encontro de um sentido que nos sustenta em meio ao caos.

1. A Liberdade do Vínculo Seguro: Reordenando Nossos Apegos

A primeira leitura, do Livro da Sabedoria, nos lembra de nossa limitação: "Qual é o homem que pode conhecer os desígnios de Deus?". Vivemos em uma cultura que idolatra a autossuficiência. A psicologia, no entanto, nos mostra que somos seres fundamentalmente relacionais. Desde o nascimento, buscamos um "vínculo seguro", uma base firme a partir da qual podemos explorar o mundo com confiança.

Jesus, no Evangelho, parece abalar essa base ao exigir que o coloquemos acima de pai, mãe, esposa, filhos. Seria Ele contra a família? Pelo contrário. Teologicamente, Ele não nos pede para anular nossos amores, mas para ordená-los. O amor de Deus, o amor Ágape – incondicional, total e gratuito –, é o único que pode ser o Sol do nosso sistema afetivo. Todos os outros amores – família, amigos, projetos – tornam-se planetas que orbitam ao redor Dele, recebendo Dele luz e calor, sem o peso de terem que ser o nosso tudo.

Do ponto de vista psicológico, quando nosso apego primário está em algo ou alguém finito, vivemos em constante ansiedade. Exigimos do outro uma perfeição que ele não pode dar, e nos frustramos. Ao colocar Deus como nosso "vínculo seguro" definitivo, libertamos nossos relacionamentos humanos. Podemos amar nossa família e amigos de forma mais pura e livre, não por aquilo que eles nos oferecem, mas por quem eles são. A renúncia que Cristo pede não é um esvaziamento, mas uma libertação dos apegos desordenados que nos aprisionam.

2. A Revolução do Encontro: Da Propriedade à Fraternidade

A Carta a Filêmon é um laboratório vivo dessa transformação. Paulo não devolve a Onésimo, o escravo fugitivo, como uma propriedade perdida, conforme a lei romana exigia. Ele o envia de volta como "um irmão querido". O que aconteceu? Onésimo encontrou-se com o amor de Cristo e isso redefiniu sua identidade. Ele deixou de ser um objeto para se tornar um sujeito.

Aqui, a teologia do Batismo se encontra com a psicologia do reconhecimento. Onde o mundo via uma relação de poder e posse (senhor/escravo), a fé instaura uma dinâmica de encontro e fraternidade (irmão/irmão). Este é o poder curativo do amor de Deus: ele restaura a dignidade intrínseca que as estruturas sociais e nossos próprios medos tantas vezes nos roubam.

Essa passagem nos interpela diretamente: em nossos ambientes, estamos tratando as pessoas a partir de suas funções (o funcionário, o chefe, o cliente) ou a partir de sua dignidade fundamental de "irmãos queridos"? O amor cristão nos desafia a ver além dos rótulos, a demolir os muros invisíveis que nos separam e a construir pontes de reconhecimento mútuo, onde cada pessoa é acolhida como um dom.

3. O Sentido na Cruz Cotidiana: Construindo uma Vida com Propósito

As palavras de Jesus sobre "carregar a cruz" são, talvez, as mais difíceis de digerir. Porém, se olharmos com atenção, Ele não fala de buscar o sofrimento, mas de abraçar a realidade com um propósito maior. O psicoterapeuta Viktor Frankl, sobrevivente do Holocausto, descobriu que o ser humano pode suportar quase qualquer "como", desde que tenha um "porquê".

A cruz "de cada dia" não é, necessariamente, uma grande tragédia. É a cruz da paciência no trânsito, da fidelidade no trabalho que se tornou rotineiro, do perdão que precisamos oferecer pela sétima vez, da perseverança na oração quando sentimos apenas silêncio. São esses pequenos atos de amor e resiliência que, quando unidos ao sacrifício de Cristo, ganham um sentido redentor.

As parábolas do construtor da torre e do rei que vai à guerra nos ensinam sobre a "psicologia da decisão". Ser cristão não é um impulso emocional, mas um projeto de vida consciente. Exige que "calculemos o custo", ou seja, que tomemos consciência do que estamos escolhendo. Renunciar a "tudo o que se possui" não é apenas sobre bens materiais; é sobre renunciar ao nosso ego, ao nosso desejo de controle, à nossa autossuficiência, para finalmente nos abrirmos a um Amor que nos preenche por completo.

Conclusão: Um Amor Sólido em Tempos Líquidos

Vivemos na "modernidade líquida" descrita pelo sociólogo Zygmunt Bauman, onde tudo é volátil, os relacionamentos são descartáveis e os compromissos, temidos. Nesse cenário, a proposta de Cristo é a mais contracultural e, ao mesmo tempo, a mais salutar que existe.

Ele nos convida a construir nossa identidade sobre a rocha firme de um Amor que não se desgasta, que não nos abandona e que dá sentido a cada passo de nossa existência. Abraçar a "sábia loucura da cruz" é, em última análise, a decisão de parar de flutuar à deriva e começar a construir uma vida com fundações sólidas, um amor duradouro e um propósito eterno. É descobrir que, ao nos perdermos no oceano do Amor de Deus, finalmente nos encontramos.


Palavras-chave: Amor de Deus, Psicologia da Religião, Teologia, Ágape, Sentido da Vida, Teoria do Apego, Discipulado Cristão.


Referências Bibliográficas:

  • BÍBLIA SAGRADA. Tradução Oficial da CNBB. Brasília: Edições CNBB, 2018. (Leituras do 23º Domingo do Tempo Comum - Ano C: Sb 9,13-18; Fm 9b-10.12-17; Lc 14,25-33).

  • BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.

  • BOWLBY, John. Apego e Perda, Vol. 1: Apego. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

  • FRANKL, Viktor E. Em Busca de Sentido: Um psicólogo no campo de concentração. Petrópolis: Editora Vozes, 2017.

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